Ursula Le Guin encontra Aline Valek
The Dispossessed (1974) e As águas vivas não sabem de si (2016)
Aviso: este texto usa o gênero gramatical feminino como “neutro”.
Ao menos à primeira vista, o paralelo proposto no título tem pouco de estranho, já que traz duas obras contemporâneas de ficção científica escritas por mulheres. Inclusive é verdade que o que me atraiu a elas foram as similaridades, o que significa que corro o risco de contradizer minha própria proposta. Mas, ainda que pouco ousado, foi intimidador escrever, porque notei a dimensão cósmica do encontro entre nós (as autoras e eu): eu falo da minha experiência de leitura com meus pés cravados à terra; Le Guin (1929-2018) fala da imensidão desconhecida e cheia de possibilidades acima de mim; Valek (1986-) mergulha minha imaginação nas profundezas oceânicas igualmente misteriosas.
O espaço e o mar são pólos milenares nas elaborações míticas e literárias, símbolos do desconhecido e das limitações humanas. Não importa quanto a humanidade reine sobre a natureza na terra, se desviamos os olhos do horizonte, vemos estampada nossa pequenez. Tem algo de muito poderoso nesse efeito de deturpar a ilusão de que somos mais que um irrisório fiapo de poeira pensante.
Eu particularmente adoro a exploração da água como elemento poético. Descobri o livro da Valek através da Ana Rüsche, no podcast Incêndio na Escrivaninha, e fui atraída de imediato pelo título. Dado que leio pouca literatura brasileira e nunca havia lido ficção científica/especulativa nacional, aproveitei a chance e tive uma surpresa agravável. As águas vivas não sabem de si é um sci-fi muito reflexivo e, assim como The Dispossessed, o enredo parece menos importante do que o ímpeto de ponderar sobre o mundo e o ser humano. A estrutura do romance intercala capítulos sobre a tripulação de uma estação de pesquisa marítima com capítulos focados nas criaturas do oceano. A narrativa mostra como a complexidade que é propriamente nossa - tudo o que carregamos na memória, o que nos move no presente e o que projetamos e tememos sobre o futuro -, é tão aterradora quando a complexidade biológica da matéria marinha. É essa combinação o que constrói a riqueza do texto, pois a trajetória dos personagens encontra lenta e suavemente o mistério das entidades que pairam na imensidão líquida. Achei a ideia absolutamente incrível.
Também incrível foi a saída que a autora encontrou para contar a história do mar: dando voz às espécies. Pela perspectiva da evolução, acompanhamos narrativas de milhões de anos condensadas pelo olhar dos animais. A força do romance está, para mim, justamente nestes capítulos, ao ponto de parecer que a autora precisou de algum esforço para incluir o realismo da representação dos personagens humanos. Algumas cenas na estação acabam contraindo um ritmo meio incômodo, com tantas pausas para digressões que parecem acontecer em câmera lenta. Não seria inconsistente que fosse o propósito da autora, já que ela está trazendo o mar para o espaço do texto, mas não funcionou bem em determinados segmentos. Minha crítica ao livro é de que existe certo contraste não muito orgânico entre os capítulos voltados para a protagonista e aqueles voltados à exploração mais livre que não se ancora nas vidas humanas. A escrita, além disso, às vezes parece pouco madura e perde o vigor. De toda forma, o nível de originalidade e de sensibilidade reconhecíveis em As águas vivas não sabem de si são admiráveis vindos de uma autora jovem como Valek.
Para falar de The Dispossessed, lembro que a palavra “utopia”, cunhada por Thomas Morus em 1516, vem do grego ou-topos e significa “lugar nenhum”. Cheguei no livro acreditando que estaria diante de uma utopia anarquista, mas não tive certeza de ter encontrado uma, ao menos não no sentido corriqueiro da palavra. Em linhas gerais, The Dispossessed nos apresenta dois planetas (ou melhor, um planeta e sua lua) em contraste pelo olhar do protagonista Shevek e por suas organizações políticas divergentes. Shevek é nativo do mundo (proto)anarquista de Anarris, mas se desloca até o mundo capitalista de Urras na intenção de transmitir sua teoria física e criar o diálogo entre os planetas.
Está claro que a proposta de Le Guin não é dar forma à concretização pura e cristalina dos nossos sonhos utópicos, mas explorar as implicações das escolhas humanas, o efeito coletivo e individual do nosso modo de encarar o trabalho, as relações, a responsabilidade com o outro, o lazer, etc.. Se pode ser lido como uma utopia, não é porque o romance apresenta um mundo perfeito, mas, pelo contrário, porque mostra a fragilidade dos nossos ideais: todo mundo construído para responder às nossas necessidades coletivas - de fato coletivas - precisa assumir a autorreflexão e a mutabilidade como princípios fundamentais. Essa talvez seja a única resposta que eu tirei da leitura, mas não é pequena.
São dois os temas principais que aproximam The Dispossessed e As águas vivas não sabem de si para mim: a solidão e a alteridade. A problemática política é pano de fundo para os embates íntimos do protagonista (e nossas posições políticas não são cercadas dos nossos fantasmas pessoais?) de Le Guin. As explorações marítimas respondem, na realidade, a demandas pessoais das criações de Valek. A literatura vive nos lembrando que não estamos sozinhos nos levando para o fundo do mar e para o alto do céu, mas também nos lembra que toda aventura é a tentativa de responder a nossos próprios mistérios.
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