Clarice Lispector encontra Daniel Defoe
Viagem à Petrópolis (conto de 1964) e Moll Flanders (1722)
Aviso 1: este texto opta pelo gênero gramatical feminino como “neutro”.
Aviso 2: contém spoilers.
Daniel Defoe (1660-1731) foi um dos primeiros romancistas em língua inglesa, eternizado na ficção realista pelas aventuras de Robson Crusoe (1719). Moll Flanders foi publicado três anos após Crusoe, desta vez com uma mulher protagonista, que — e não teria como ser de outra forma — vive aventuras bastante distintas do personagem mais famoso de Defoe. O Estranhos Paralelos #2 surgiu das surpresas felizes que o romance de três séculos me trouxe em termos de representação feminina.
Formando par com Defoe na discussão, trago Clarice Lispector (1920-1977), que dispensa apresentações aos brasileiros, já que até mesmo quem nunca se ateve às aulas de Modernismo conhece seu talento como compositora das mais cafonas frases de autoajuda no Facebook (ou ainda era Orkut?). Sejam todos aqueles fragmentos de fato retirados de suas obras ou falsamente atribuídos a ela, fato é que sua qualidade literária não sobrevive a fragmentações. "Contexto é tudo" é o clichê do qual ela não escapa, mas clichê é tudo o que sua literatura não é. Precisei selecionar um só conto para o paralelo, mas não por ter muito o que dizer sobre C.L.. Na realidade, vivo sempre em busca de caminhos para narrar minha experiência como sua leitora, que começou na infância, lá pelos 8 anos, quando fui cativada pela honestidade cortante do livro A mulher que matou os peixes, uma de suas obras infantis. Desde sempre, seus textos têm sugado as palavras de mim. Fico a pescar no ar o que poderá dar conta desse mistério todo, desisto, encaro a parede. Esse é meu ritual pessoal de leitura (aproveitando para admitir a dificuldade do texto de hoje).
Começo com o conto “Viagem a Petrópolis” (presente no livro Legião Estrangeira). A sentença de abertura apresenta a protagonista de apelido Mocinha:
Era uma velha sequinha que, doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo. (p. 316)
Sem família ou casa, Mocinha sobrevive de caridade, circulando entre lares de estranhos, comendo o que lhe oferecem e dormindo em qualquer superfície, pois seu corpo duro não demanda muito. A ação do conto tem início quando alguém nota a insistência de sua presença no casarão onde dormia já há tempos. Lá, ela sobra, tal como um objeto sem uso que incomoda, mas tão insignificante, que ninguém cria a iniciativa do descarte. Uma viagem dos moradores a Petrópolis surge como uma boa ocasião para a limpeza dos excessos domésticos e resolvem levar Mocinha para a casa de um parente. Na noite anterior, a narradora nos permite acompanhar o sono agitado da velha, formando os contornos de sua vida antes da indigência e da aparente impassibilidade. Ela recorda os filhos, um morto no trânsito, a outra no parto; recorda o marido; em espasmos, sai do torpor que a velhice e a escassez lhe impuseram. Abruptamente, a cama é dura no contato com seu corpo e a fome corrói o estômago: “É que se sensibilizara toda” (p. 318)
No dia seguinte, no carro para Petrópolis, o mundo que ela vê se alterna entre o oblívio do presente e os fantasmas do passado, que agora a assombram em forma de memórias de sua vida de “gente” (ou apenas de esposa e mãe?). A partir daí, ela tem lapsos de consciência em que tudo à sua volta parece enigmático. Na casa de Petrópolis, sua fome vira vertigem e revolta que não se consolidam:
O que fazia naquela casa? Mandavam-na à toa de um lado para outro, mas ela contaria tudo, iam ver. Sorriu encabulada: não contaria era nada, pois o que queria mesmo era café. (p. 322)
A família, que nada sabia de Mocinha, diz a ela que a casa não tem espaço, que não é asilo. Ela se retira em direção à estrada, ainda com a lembrança da família (não saudade, a narradora ressalta, apenas lembrança), e morre reclinada em um tronco de árvore.
Como tudo o que CL escreve, este texto é mais difícil do que uma leitura desatenta pode captar, assim como Mocinha é menos multifacetada a quem apenas enxerga nela uma velhinha inofensiva, e não vê a casca que criou em volta de si, o escudo de sobrevivência. Aqui, a leitora de classe média+ pode mesmo sentir a familiaridade dessa figura muda e cadavérica, não rara nas ruas brasileiras, mas a familiaridade também pode ser aquilo que não incomoda mais. [Uma pequena digressão: é um dos poderes da literatura nos fazer olhar para a realidade transfigurada de ficção, não como se a Verdade estivesse espelhada ali, ou habitasse atrás dos muros das palavras, mas no sentido de que alguma verdade se produz justamente no velamento, ou em um desvendar contínuo, que não é nunca revelação] Por fim, a consternação com que saímos da leitura vem menos da morte da velha que do silêncio que ela deixa: o mais doído do conto é a ausência de história (quem leu o Estranhos Paralolos #1, deve estar notando uma semelhança que não é mera coincidência quando pensamos em histórias de mulheres). C.L. nos lembra que é preciso não cometer a violência de tornar Mocinha mártir, símbolo sem rosto. É preciso reconhecer o pedido ético da literatura que, nesse caso, me soa como o incômodo do familiar, mas principalmente do particular, de uma história única, que morre e não nos deixa nada para velar.
Moll Flanders, apesar de muito mais distante das leitoras contemporâneas, é recebido com mais leveza que o conto de C.L. Talvez porque a protagonista ganha voz e toma as rédeas da própria história, ainda que mais no narrar que no viver. Não é possível resumir a trajetória de Moll em poucos parágrafos sem distorcê-la consideravelmente — inclusive o título do romance na época de lançamento (e ainda bem que aprendemos concisão desde do século XVIII) já deixava claro que o importante era “como” e não “o quê”:
As venturas e desventuras da famosa Moll Flanders & Cia. Que nasceu na prisão de Newgate, e ao longo de uma vida de contínuas peripécias, que durou três vintenas de anos, sem considerarmos sua infância, foi por doze anos prostituta, por doze anos ladra, casou-se cinco vezes (uma das quais com o próprio irmão), foi deportada por oito anos para a Virgínia e, enfim, enriqueceu, viveu honestamente e morreu como penitente. Escrito com base em suas próprias memórias.
Quem lê o título/sinopse, pode acreditar que sabe quem foi Moll sem ler sua autobiografia; quem lê sua autobiografia, pode erguer a cabeça e afirmar que sabe quem, de fato, foi Moll. Defendo uma terceira opção, aquela que acredita estarem leitoras e não-leitoras igualmente iludidas.
Moll é já idosa quando conta a própria vida, ou seja, temos o ponto de vista de uma narradora distanciada temporalmente do objeto narrado. Ainda, segundo o que indica o prefácio do autor, a versão que lemos não é a original, mas uma versão “mais modesta”, que, segundo ele, necessitava ser amenizada, expurgada (mas lembremos que estamos no terreno da ficção mesmo no prefácio: Defoe não recebeu a história de Moll, ele a compôs). O que foi selecionado, porém, não é exatamente comedido; porém, Moll tem uma justificativa para dispender tanto tempo em sua degeneração:
(…) publicar este relato de minha vida é para o bem da moral justa de parte dela, e para instrução, cautela, advertência e melhoria para cada leitor (tradução minha)
Moll nasceu na prisão onde sua mãe se encontrava encarceirada e passou a infância à mercê da caridade de estranhos. Desde muito cedo, aprendeu a cuidar de si própria e determinou seu propósito: viver como uma gentlewoman. Para isso, se envolveu com múltiplos homens por interesse, mentiu sem pudor, roubou, manipulou... Mas chega à velhice abastada e lendária como a mais habilidosa ladra da região.
É fato que encaramos Moll com olhos do século XXI, bem mais maleáveis em nossas noções de certo e errado; ainda assim, todas as atitudes listadas são tabus para nós. Podemos aproveitar, então, suas vivências como ensinamentos sobre o que não fazer? Vi no twitter a sugestão para a tradução de cautionary tale como “quem avisa amigo é”, mas leio o tom didático na história de Moll como mais um de seus engodos, desconfio que seu propósito seja mais se exibir que avisar. De toda forma, ela tem ótimas justificativas para suas vilezas, ou, ao menos, cativa as leitoras ao ponto de suas ações mais torpes parecerem legítimas (apenas a experiência de leitura de seus relatos pode motivar essa cumplicidade, nada que eu diga os substitui nesse efeito). Afinal, a dependência econômica feminina era um fato sobre a realidade britânica da época e, sem um dote, uma mulher tinha poucos atrativos como esposa e, sem um casamento, estava à deriva. Sendo assim, ela poderia trabalhar, mas a honestidade do trabalho era sinônimo de uma vida de sacrifícios sem retorno.
Ainda que saibamos muito mais de Moll que de Mocinha, o contraste entre as vidas se faz claro: Moll cresce, enriquece, termina cercada de luxo e conquistas (e arrependida, claro, como poderia admitir ter orgulho de tanta obscenidade?). Já Mocinha é uma incógnita; sobre seu passado, sabemos apenas que ela já teve lar e família, fim é trágico, o meio, contudo, está aberto à imaginação das leitoras. Talvez tenha sido esta abertura o que me impeliu ao paralelo com a trajetória errática de Moll, ainda que menos pelas similaridades que pelas diferenças. Na aproximação artificial entre as duas, imaginei Moll em uma versão brasileira contemporânea: nasce em uma prisão feminina carioca e cresce em casas de classe média alta em Botafogo, até que, adolescente, a caridade se torna estorvo e ela é convidada à independência. Pode, então, viver na rua catando lixo ou mendigando ajuda; talvez até um ensino médio tenha feito, pode conseguir um subemprego, torçer para ser reconhecida pela inteligência, contar com seus méritos (porque é só querer, não é mesmo?). Ou pode usar sua perspicácia e lábia para dar golpes nos bancos, nos homens, na própria sorte. Ela deseja a indulgência de suas leitoras por não ter escolhido uma vida de pobreza e ela tem a minha. Mocinha não nos pede nada e não precisaria, porque sua trajetória não tem plot twist.
Em algum cenário, a sorte das duas se toca em fios invisíveis. Existe algo em comum entre essas existências tão distantes no tempo e no espaço. Eu crio aproximações descompromissadamente, mas elas me afetam na forma de encarar as estruturas sociais e também a solidão do ponto de vista existencial. E espero que você, que lê sobre Moll e Mocinha através de uma outra mulher, também possa imaginar destinos que elas não tiveram, fazendo sentido em paralelo ou não, estimulando sua compaixão, identificação ou revolta.
Divida comigo sua relfexão nos comentários e diga o que achou desse estranho paralelo!
E compartilhe com quem também ama livros:
Edição usada: LISPECTOR, Clarice. Todos os Contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.
(a edição de Moll Flanders é obscura)
curti mto esse texto, em especial a digressão lá no começo. não conheço a Moll mas o jeito que vc falou dessa ausência/presença da história das personagens me deu a impressão de ter lido. gosto desse ler a leitura de outra leitora, e de inventar/ saber que é impossível inventar essas histórias.
Assumindo que as mesmas estratégias da Moll (golpes, prostituição, etc) estavam disponíveis pra Mocinha, quando dizes que a Moll tem tua indulgência por não ter escolhido a pobreza não estás indiretamente implicando que a Mocinha escolheu a vida de indigente?