Os autores não têm quase nada em comum. Ele – russo, aristocrata, reverenciado como gênio e visionário – escreveu romances realistas no século XIX. Ela – afroamericana, proletária e socialmente invisível – se embrenhou pelo sci-fi no fim do século XX. Qual deles é superior? Bom, se os autores tivessem um confronto físico, eu não hesitaria em apostar na Butler (compare as fotografias dos dois e veja por você mesmo), mas a comparação de méritos não me interessa aqui. Nos textos de Estranhos Paralelos, meu foco é na experiência de leitura.
As obras selecionadas são fortemente distintas e excelentes na distinção. A primeira apresenta o cenário político e social da Rússia; a outra imagina a Terra destruída pela guerra nuclear e ocupada por alienígenas que manipulam nosso DNA... Ouso dizer, porém, que elas têm algo em comum: o tratamento complexo do ser humano, capaz de tanta beleza e de tanta destruição, tanto erro e tanta lucidez – incongruências fascinantes de que apenas a literatura, para mim, dá conta.
"You are horror and beauty in rare combination" (afirma Butler sobre a humanidade em Dawn)
Em Anna Kariênina, a adúltera suicida é menos central do que o título do romance dá a entender. Ela divide palco com meu personagem favorito: o fazendeiro Liévin. Liévin encontra Anna em apenas uma cena; de resto, suas histórias caminham em paralelo como as linhas do trem que no fim a matará (não é spoiler quando o livro tem dois séculos). Liévin ascende enquanto Anna cai, pois encontra propósito em seu trabalho na terra, encontra paz para suas inquietações existenciais e se torna o núcleo estável que sustenta diversos ramos de sua vida: sua família, os trabalhadores da fazenda, os animais e as plantações. Anna, ao romper os laços com o marido e o filho, embarca em uma jornada corajosa que a sociedade russa da época não estava preparada para assistir. Seu suicídio marca o esgotamento de uma mulher transgressora diante da solidão, da culpa e da insegurança.
É um pouco difícil acreditar que Tolstói não tenha usado algum tipo de magia negra e invadido a mente das pessoas que ele disseca com tanta maestria. Não me lembro de ter lido um livro que me fizesse sentir mais intensamente as personalidades brotarem das páginas, suas almas encarnadas em corpos quase palpáveis na minha imaginação. Mas o aspecto mais intenso da experiência foi admitir a beleza e a autenticidade de suas personagens femininas, entre as quais minha favorita é uma mãe de cinco filhos. As cenas que focalizam sua relação com o casamento e com a maternidade me dizem como a literatura é um território onde as leis da realidade não se aplicam, as fronteiras se borram e nada é de ninguém. Será?
Octavia Butler foi uma prova viva de que a ideia da universalidade da literatura é tudo menos neutra. Ela tinha muito a dizer envolvendo seu lugar na sociedade como mulher negra - e é de fato possível ler sua obra por esse prisma, mas não exclusivamente. Assim como no caso de Tolstói, seus escritos não se reduzem às suas experiências de vida e é isso o que os torna brilhantes. Ela disse em uma entrevista que suas protagonistas não são apegadas à cor da pele porque, ao contrário do que ocorre na realidade concreta, a ficção não impõe a elas os mesmos desafios. A cor e o sexo acabam importando menos nos livros, porque, afinal, são traços problemáticos apenas em um contexto que os torna um problema.
Em Lilith's Brood (a trilogia em que Dawn é o primeiro livro), racismo e misoginia estão acoplados às mazelas que cercavam a vida na Terra e que, por fim, quase dizimaram os seres humanos. No mundo pós apocalíptico, uma raça alienígena resgata os poucos sobreviventes para "realibitá-los", o que inclui alterar seus gens (curar doenças e aumentar a longevidade, por exemplo), com o objetivo de gerar uma nova espécie meio humana, meio alien. Isso mesmo: reprodução interespécies.
A leitura acompanha a protagonista Lilith, que, no primeiro volume, tem tanta ideia do que está acontecendo quanto nós, o que quer dizer que acompanhamos o desdobrar desse cenário bizarro através de alguém que também está explorando o desconhecido aos poucos. Assim como serve de guia às leitoras, Lilith foi escolhida para guiar os humanos na direção do futuro em conjunto com seus "salvadores", o que levanta inúmeros conflitos sobre liberdade, consentimento, consciência, coletividade, "natureza" humana, ética... O primeiro livro é mais uma apresentação do universo ficcional e do projeto dos aliens, mas é também o momento em que a obra investe intensamente em pontos filosóficos férteis à ficção e à realidade. Afinal, a autora pode ter imaginado a raça alienígena, entretanto não inventou a guerra nuclear, apenas imaginou suas consequências indo um pouco mais além do que nós fomos capazes até hoje.
Questões me vieram enquanto eu acompanhava a trajetória da protagonista, por exemplo: estamos fadados a nos destruir? Ainda, o que somos é digno de preservação? E o que somos, afinal? O que é nosso, inscrito na nossa biologia, e o que é aprendido, adquirido? Obviamente não tenho resposta para nenhuma das perguntas (se alguém tiver, favor deixar nos comentários).
Chamo a atenção para um último ponto que me atraiu nesse estranho paralelo inaugural. A personagem de Anna, enquanto vive isolada na casa do companheiro, ocupa seu tempo devorando livros de literatura, filosofia e afins. Ela deseja participar ao máximo do universo que a cerca, entender e conversar sobre tudo. Chega até mesmo a escrever um livro infantil, mas não confia na própria capacidade e o mantém para si. As mulheres da high society da época, afinal, estavam restritas ao ambiente doméstico e aos eventos sociais, nem mesmo à educação formal elas tinham acesso. Excluída da sociedade após abandonar o marido, ela se vê outra vez condenada ao papel de esposa e mãe, o mesmo papel que ela antes havia rejeitado em prol da liberdade de escolha. O fato é que não havia saída para ela que não a condenasse a viver alienada de si própria e, na minha leitura, foi a ausência de história o que a matou (em algum nível, ela é uma protagonista sem história, por mais contraditório que pareça). Meu ponto é que a sentença de silêncio vivida por Anna não é completamente distinta daquela que circundou Octavia Butler. Como mulher negra, teve que enfrentar obstáculos ancestrais entre o que esperavam dela e a posição ativa e criativa que queria ocupar. Minha imaginação de leitora acabou pensando um mundo em que Anna também consegue escrever e explorar seus impulsos inventivos a despeito das barreiras enlouquecedoras da realidade. Octavia Butler sem dúvida representa esse mundo.
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Paralelo incrível, me deixou com muita vontade de ler Octavia Butler e me tocou muito quanto à história da Anna. Ela queria liberdade, justo o que a sociedade estava trabalhando contra. Não a teria ficando no casamento e nem a teve no relacionamento com Vronski. Adorei a forma como colocou sua ausência de história e de como os livros trazem essa ambiguidade humana do belo e do destrutivo, fez todo sentido para mim! Ansiosa pelos próximos estranhos paralelos :)
Amei a leitura Le! Essa sacada da Anna como uma protagonista sem história parece muito boa, embora eu nunca tenho lido o romance. De resto, dei uma gostosa gaitada imaginando o Tolstói e a Butler caindo na porrada! HAHAHA